sexta-feira, 22 de junho de 2007

II - Aos olhos famintos

Friedrich: Queira me desculpar, meu caro público, pela grosseria que cometi em nosso primeiro encontro. Não pude evitar, foi irresistível. Além disso, eu menti sobre meu nome. Existe “algo mais”, mas não entremos em tão pífio asterisco. Naquela noite em que vos encontrei eu havia bebido muito néctar e perdi o controle. O Néctar (bebida calma que repousa, cristalina, ao som nutrido pelos vates) é o nosso vinho e, à medida que absorvemos tal líquido ardente, nos tornamos progressivamente lascivos, assim como o vinho vos embriaga. No auge de minha excitação pensei em deflorar a própria película divisória e copular com a própria Névoa. Meu corpo tremia tanto que iria se desintegrar em poucos instantes diante de tanta força. Por isso tratei de ser rápido. Evidente que eu tinha segundas intenções. Eu estava ali, invadindo a própria Névoa, prestes a ser descoberto em um ato proibido, prestes a derreter e virar parte daquele fluido e ainda pensando no que viria depois de aberto este orifício. Eu finalmente atingi o mais extremo clímax e me arremessei para longe imediatamente. Fiquei por horas observando o que havia feito. O deslocamento da Névoa foi tão intenso que perfurou o buraco de verme. Eu havia aberto uma fresta na névoa de Tétis e agora estava sendo observado por todos os humanos que soubessem o caminho. Aí estão vocês, meus queridos voyeurs, talvez curiosos em saber mais sobre mim. Tenho uma irmã gêmea, Gabrielle, a mais linda de todas as criaturas............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................Oh, me perdoem, me perdi em um devaneio. Sobre o que eu falava? Ah sim...Gabrielle (estava eu devaneando em suas curvas) minha amada irmã. Permitam que eu a descreva: na alvura de sua face arrostam duas lindas grotas, onde doces bugalhos já habitaram, um nariz delgado que se encaixa a qualquer ósculo e suaves lábios vibrantes de ganga. Seus cabelos brunos caem nas delicadas espáduas, dançando levemente ao sabor das brisas. Seus seios mansos adornam o dorso desnudado. Sua anca é uma folha fina de jasmim e sua pele um deleite cianótico. Gabrielle é meu par nesta volúpia infértil. Tenho, entretanto, espelhos paralelos nos quais me dedico a manter uma evolução constante. Tenho preparado minha Desdêmona para que reacendesse nela a sua chama vital ou pelo menos houvesse alguma expressão notável em seu semblante. Devo explicar quem é a tão citada senhorita. Uma linda dama chamada Elena, que encontrou, como eu, os caminhos para esta terra. Elena não soube domar seu júbilo e acabou em pedacinhos (flutuantes). Capturei então, cada pequena peça e uni todas as migalhas com devoção. Confesso que a conheci em Telesto, uma esférula vizinha, numa rápida visita. Seu ventre ubre foi preenchido pelo oriundo de nossa cópula. Ela me visitou diversas vezes com o menino, (durante minha estadia) para me mostrar como ele havia crescido. Não sei o motivo de minha inércia, mas eu não podia evitar tal catatonia que me abatia na presença do nanico. Como eu temia aquela pequena criatura! Ela insistia naquele transe assíduo. Vi-me então, fadado a encara-lo. Quando os recebi, vieram trotando, felizes, satisfeitos e até me esqueci do asco que sentia por ele. Ela apreciava um pito de simpatia e balançava as mãos do garoto. Mas quando me aproximei percebi que ele era um pequeno e repugnante besouro, que corria pelas minhas mãos, numa cócega incômoda e molhada. Apavorado, lancei ao chão toda a carapaça do bicho asqueroso e dei-lhe densas pisadas, encerrando tal vã existência. Elena parecia furiosa, mas ao olhar novamente percebi que ela ria furtivamente de meu horror pela cena. Desde este confuso episódio não a vi mais inteiriça. Após reencontra-la, fragmentada pela Névoa, estive reconstruindo sua estrutura. É uma boneca preciosa. Elena é minha Desdêmona, minha boneca taciturna, minha galdrana. Gabrielle é minha porção simétrica, minha germana, minha cereja espumosa. As duas musas conduzem uma amálgama alvi-cárdea, que se segue formando uma aquarela de grunhidos crômicos, vandálicos, que se alastram ousados pelo meu crânio enleado. Essas lamúrias ecoam, lancinantes, pela minha vasta consciência e me congelam sempre que penso na femínea dualidade. É uma carruagem que me conduz até a colina do pudor. Não estou acostumado a este gelo convulsivo que me dilacera os favos. Eu acredito que todas as criaturas têm uma temperatura agradável que seja ideal para seus padrões (algo muito pessoal). Eu quero dizer, nem mais nem menos, preciso da temperatura exata em qualquer esfera que eu esteja e estou passando por este inverno insólito. Como é difícil lidar com dois cobertores! Eles se entrelaçam num emaranhado de pêlos e não há como domá-los e manter a distância em uma só manobra. Eles acabam me enrolando todo e me tornam um imóvel e estatelado canudo, envolvido por garras incertas. Eles então fazem uma dança vagarosa que me incomoda pela desordem. Ao tentar corrigi-los me atiro ainda mais às famélicas presas do casulo. Isto me faz lembrar sobre a paixão de Johann, um zorate que conheci nestas terras, que é extremamente fissurado por alguns tecidos, em especial a seda e o cetim. Ele julga as vestimentas e suas texturas mais atraentes do que as próprias damas que as vestem. Certa vez, ele saiu (alucinado) gritando por aí que queria se casar com o tecido (de um vestido da senhorita Zara) e que já não precisava mais de nenhuma dama para vesti-lo. Ah, que criatura hilariante! Gargalhadas infames voam pela arena. Voar. Voar para longe. Eles estão vindo.

-Friedrich!